Em todo o mundo, bebês, crianças e adolescentes intersexo enfrentam a patologização de suas características sexuais durante a vida. É muito comum que essas pessoas não tenham autodeterminação corporal e sejam submetidas a violações dos direitos humanos. No Brasil, Dionne Freitas está determinada a dar fim à anormalização das pessoas intersexo.

De LGBT a LGBTI+

Por que a comunidade brasileira fala em LGBTI+ em vez de apenas LGBT?

É tudo graças à ativista intersexual Dionne Freitas. O I significa intersexualidade, e o + mostra a grande diversidade de identidades de gênero e orientações sexuais.

Veja mais sobre cada letra da sigla e sobre as identidades e orientações sexuais em nosso Manual de Comunicação LGBTI+ 2018.

Dionne Freitas é uma terapeuta ocupacional com uma paixão pela reintegração de usuários de drogas na sociedade. Ela também é uma ativista intersexo, que foi registrada como menino ao nascer. Ela se declarou publicamente como pessoa intersexual em 2015 e criou um canal no YouTube em que fala sobre questões da intersexualidade. Graças a ela, foi montado um coletivo para pessoas intersexuais – Visibilidade Intersexo. Hoje ela é uma das líderes da recém-criada Abrai – Associação Brasileira de intersexos. “Se você chamar a gente de esquisitos, pelo menos deixe a gente ter a nossa própria voz”, diz Dionne, com seu estilo energético e dinâmico.

Há mais do que dois sexos e gêneros

“Intersexo” é um termo geral usado para uma variedade de condições em que uma pessoa nasce com uma anatomia reprodutiva ou sexual que não se encaixa nas definições normativas feminina ou masculina. A intersexualidade não necessariamente tem a ver com genitália: é muito comum que ela aconteça por meio de cromossomos, gônadas ou hormônios sexuais. No mundo, até 1,7% dos bebês nascem com características sexuais que não se encaixam nas definições tradicionais de feminino e masculino. Isso faz uma pessoa intersexo ser tão comum quanto uma pessoa ser ruiva.

Em alguns países, por exemplo, na Índia, na Alemanha e na Austrália, as pessoas intersexuais podem hoje ser registradas como pertencentes ao terceiro gênero. Em muitos países, incluindo o Brasil, uma criança recém-nascida deve ser registrada ou como masculino ou como feminino. A intersexualidade mostra com clareza que há mais do que dois sexos. No entanto, nas sociedades binárias e cisnormativas, as pessoas intersexo também enfrentam estigmatização e discriminação constante. Nos piores casos, isso pode levar até ao infanticídio e ao abandono. Abandonos e infanticídios de crianças intersexo foram relatados na Uganda, no Quênia, no sul da Ásia e na China.

Quando pessoas intersexo são “normalizadas” para pertencerem ao sexo feminino ou masculino, o direito da autodeterminação corporal delas é violado. Intervenções médicas para modificar as características das pessoas intersexo sem o consentimento delas é algo que vem acontecendo em todos os países onde os direitos humanos das pessoas intersexo são estudados.

Processos de “normalização” muitas vezes levam a uma série de cirurgias e tratamentos de alteração hormonal para criar características sexuais mais aceitas na sociedade. Tais intervenções muitas vezes também envolvem esterilização. Todo o processo é extremamente controverso, pois não há nenhuma evidência sólida de bons resultados. De fato, intervenções são normalmente desnecessárias do ponto de vista médico. É trágico que bebês, crianças e adolescentes intersexo enfrentem a patologização de suas características sexuais durante a vida.

Intervenções têm consequências adversas como trauma, impacto na função sexual e sensação de violação dos direitos de integridade física e mental. Elas foram criticadas recentemente por muitas organizações internacionais, como a Organização Mundial da Saúde e outros organismos da ONU ligados aos direitos humanos. Em abril de 2015, Malta se tornou o primeiro país a criminalizar intervenções cirúrgicas sem consentimento, e no mesmo ano o Conselho da Europa se tornou a primeira instituição a declarar que pessoas intersexo têm o direito de não passarem por intervenções de afirmação sexual.

Bandeira Intersexual
Bandeira Intersexual (Fonte: Reprodução)

É hora de parar de patologizar e anormalizar pessoas intersexo

No Brasil, desde março de 2018, indivíduos transgêneros e intersexuais podem alterar seu gênero de acordo com o marcador de gênero que escolherem. Desde 2008 a transexualização e a hormonização acontecem no sistema público de saúde. No entanto, há uma complexa burocracia e grandes barreiras ao tentar passar pelo processo, pois o programa nacional de saúde LGBTI+ ainda tem muitas limitações.

Ao passo em que a natureza pública dos tratamentos tem seus benefícios, ela também limita as possibilidades de entrar em tratamento. A hormonização é permitida apenas para pessoas acima de 18 anos e para se inscrever na longa e penosa lista de cirurgia é preciso ter 21 anos. Antes de 2008 era comum que todas as pessoas transgêneros fizessem o tratamento por conta própria. Hoje em dia, devido ao limite rígido de idade, é comum que pessoas menores tentem fazer o tratamento sozinhas. Além disso, há uma falta significativa de clínicas. No Paraná, as pessoas do interior precisam ir a Curitiba para se tratarem. Para Dionne Freitas, seria muito melhor se esses tratamentos fossem abertos a empresas privadas, pois isso criaria mais oportunidades, por exemplo, de obter fundos para os tratamentos.

Quem regulamenta os tratamentos são o Conselho de Medicina e o Conselho de Pediatria. No entanto, os dois conselhos têm opiniões diferentes sobre os limites de idade para os tratamentos de pessoas transgênero e intersexo. Para o Conselho de Pediatria, os tratamentos podem iniciar aos 16 anos, enquanto para o Conselho de Medicina, o limite de idade é definido como 18 anos.

“O que para mim é problemático é que o sexo dos bebês possa ser alterado sem o consentimento de ninguém, mas quando um menor deseja mudar o próprio sexo, não é possível”, diz Dionne Freitas.

Para os que têm menos de 18 anos, há apenas dois hospitais. O que Dionne vê como um problema central é que esses dois hospitais são de pesquisa. Mesmo que seja importante produzir mais literatura de pesquisa nos tópicos da intersexualidade, também é problemático ver que os indivíduos intersexo são objeto de pesquisa. Como objetos de pesquisa, eles são anormalizados e vistos como algo de outro mundo. Se entendêssemos que há mais de dois sexos, não seria necessário anormalizar as pessoas que não se encaixam nas categorias predominantes.

A Abrai tem foco na educação de médicos e de pessoas que trabalham com saúde e trabalha como uma plataforma para ativismo político. O ativismo político está centralizado principalmente na crítica ao Conselho Federal de Medicina pelo linguajar usado ao se referenciar à intersexualidade. O que Dionne Freitas vê como o obstáculo mais urgente é que as questões intersexo são interpretadas de acordo com uma legislação que data de 2003. De acordo com a legislação, os indivíduos intersexo devem ser “normalizados” assim que possível. A legislação prevê que a decisão sobre a “normalização” deve ser feita em conjunto com o paciente apenas se possível. Como recém-nascidos não podem participar do processo de decisão por razões óbvias, na prática isso significa que a decisão sobre mutilação é feita contra a vontade própria do indivíduo.

O Conselho Federal de Medicina está relutante em admitir a natureza discriminatória do linguajar que usa. Portanto, a Abrai, acima de tudo, está aguardando que haja abertura para poder começar a discussão do assunto.

“Você tem direito à autodeterminação corporal”

A intersexualidade deixa claro que há mais de dois sexos. Enquanto a sociedade cisnormativa e binária está obcecada com as duas categorias sexuais e tenta encaixar cada indivíduo em uma ou outra, a autodeterminação corporal e os direitos humanos são violados. Felizmente, as questões intersexuais estão se tornando mais importantes dentro da comunidade LGBTI+ e até mesmo em discussões públicas mais amplas.

“O estado deve, com urgência, proibir cirurgias desnecessárias e procedimentos médicos em crianças intersexo.”

O Escritório do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos publicou uma declaração conjunta convocando os governos a proteger as crianças e os adultos intersexo contra violações dos direitos humanos. O que precisa ser feito agora é colocar essa declaração em prática. De acordo com as Nações Unidas pela Conscientização sobre Intersexualidade, as crianças intersexo não precisam ser corrigidas pois são perfeitas do jeito que são.

Para as pessoas intersexo de todo o mundo, Dionne Freitas deseja dizer: “Você tem direito à autodeterminação corporal. Eu sempre estou aqui para dar apoio para vocês e para mostrar o caminho, e assim as pessoas intersexo um dia terão autodeterminação integral e acesso a direitos humanos fundamentais”.

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Por Heidi Nummi – estudante de mestrado de Política Mundial, jornalista autônoma e ativista LGBT da Finlândia. Fez um estágio de 3 meses no Grupo Dignidade, em 2018-2019.

Traduzido por Thiago Hilgertradutor autônomo, professor de localização de jogos, gaymer e futuro roteirista de jogos